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quinta-feira, 7 de março de 2013

"A FESTA"



Ao vê-lo sorrir para si fica atrapalhada e, quando ele se aproxima, baixa os olhos, roda nos calcanhares, sentindo as solas lisas dos sapatos de verniz deslizarem perfeitamente no soalho. Pensa nos sapatos, como deslizam perigosamente por serem novos, como são tão brilhantes como desconfortáveis. Não gosta de festas, das luzes psicadélicas a faiscarem cores que encadeiam, da música demasiado alta, da confusão de pessoas a dançarem, atropelando-se alegremente, lançando gargalhadas ruidosas que se perdem debaixo dos decibéis elevados. A sala vibra, os seus ouvidos vibram e só deseja sair dali e, sobretudo, que ele a deixe em paz. Arrisca um olhar tímido por cima do ombro para ver se ele desistiu de vir atrás de si. Percebe que parou a meio da sala, mas continua a vigiá-la pelo canto do olho. Vira precipitadamente a cabeça, sem saber se o terá encorajado. Olha em redor um pouco irritada, procurando uma saída de emergência, vê dois rapazes e uma rapariga passarem por uma porta. Avança para a porta sem pensar e vê-se num corredor deserto e silencioso. Dá uns passinhos inseguros na penumbra. A porta abre-se atrás de si e o estrépito da festa quebra o silêncio de rompante. Um rapaz e uma rapariga passam por ela com um olhar intrigado, soltam uma gargalhada cúmplice, continuam pelo corredor fora a rir-se dela, desaparecem ao fundo. Logo ali à frente, à direita, um clarão amarelo interrompe a luz frouxa do corredor. Ela aproxima-se, ouve vozes sussurradas, empurra um pouco a porta. É a cozinha. Os dois rapazes encostam-se ao balcão com a rapariga à frente. Param de falar.
- Entra, diz o que está mais próximo, que tem uma garrafa de cerveja na mão.
O outro puxa a rapariga para si e começam a beijar-se com um à-vontade lascivo. O amigo olha para eles, para ela, abana a cabeça e revira os olhos, aproxima-se dela, apoia uma mão na parede, por cima do ombro dela, impedindo-a de recuar para a porta.
- Como te chamas? Pergunta-lhe ao ouvido com a voz entaramelada.
Ela tenta passar por baixo do braço dele, mas ele dobra o cotovelo, bloqueando-a. Depois beija-a no pescoço, desajeitadamente. Ela debate-se, mas ele persiste por entre risadas. Os outros também se riem, incentivando-o. Ele encosta-a à parede, ela está em pânico. Uma mão determinada afasta-o dela, puxando-o violentamente pelos cabelos.
 - Voltas a tocar-lhe e vais parar ao hospital, avisa-o, num tom seco.
Eles não se atrevem a reagir. Ela recupera o fôlego, aliviada. É o rapaz que a vigiava na sala.
- Vamos, diz-lhe ele, não voltes a afastar-te de mim.
E ela segue o irmão pelo corredor, obediente e agradecida agora por tê-lo sempre a protegê-la. 

(07/03/2013)
Joaquim Rodrigues

"CONHEÇO O TEU LIVRO" (HD) Joaquim Rodrigues


"COISA DE FILME"

                                     


A reunião de trabalho prossegue sem ele. Ele está algures a pensar no livro ignorado em cima da mesa da cozinha, ao lado do prato. A comida está fria porque ele está a pensar no cinema, de onde saiu a pensar na esplanada do centro da cidade, onde se foi sentar, ansiando então por regressar a casa, contrariado por se ter esquecido do livro. Na mesa ao lado ela está com um livro nas mãos, mas os olhos teimam em navegar distraidamente pela página sem que retenha uma frase, uma ideia. Um miúdo com uma camisola às riscas dá um grito, ela espreita por cima do livro e ainda vê o balão que lhe escapou das mãos a ascender lentamente. O pai do miúdo levanta-se e atira a mão ágil ao fio do balão, falhando-o por centímetros. Ele vê a mesma cena. A criança começa a chorar, os pais prometem que lhe compram outro balão, mas o miúdo, inconsolável, não se cala. Ele cruza os olhos com os dela, estão os dois a testemunhar o pequeno drama. Ele sorri-lhe e encolhe os ombros. Ela tem uma reação idêntica, encolhe os ombros e faz uma careta divertida, fingindo-se aflita com a birra da criança. Ele repara no livro que ela tem no colo. Vai fazer um comentário mas hesita, não diz, diz, não diz... Fica uns segundos naquele impasse. Ela acaba por desviar os olhos. Ele não resiste e diz.    
 - Esse livro é muito bom, não é?
 Ela vira a capa para si mesma, como se precisasse de a ver para saber que livro está a ler.
 - É, concorda, mas é difícil ler com esta animação toda.
 - Também o estou a ler, diz.
 - A sério? Eu comecei-o hoje, ainda vou no princípio.
 - E eu estava aqui a pensar que me esqueci do meu.
À noite, na cozinha, ele tem o livro ao lado do prato esquecido, com a mente a vaguear, a lembrar-se da mulher que conheceu depois do cinema, da coincidência do livro e da conversa que teve com ela. Ele escuta vagamente o seu nome na reunião. Percebe que estão todos à espera que diga alguma coisa, mas estava outra vez a pensar nela e não faz ideia do que falavam. O chefe pergunta-lhe se está cá, o colega do lado segreda-lhe a pergunta. Ele pede desculpa, recupera a compostura, responde. Ao fim da tarde volta à esplanada. Leva o livro na mão e uma ansiedade latente. Quando a vê sentada na mesma mesa a ler o livro sente um agradável alívio. Aproxima-se sem saber que ela está só a fingir que lê, à espera que ele diga qualquer coisa, e diz.
 - Hoje também trouxe o meu!
 Ela, simulando uma surpresa, diz.
 - Olá, está bom? Então, hoje veio prevenido.
 - Hoje vim, diz ele.
 Depois senta-se à mesma mesa de ontem, ao lado dela e diz.
 - Estava a pensar que esta coincidência parece coisa de filme.
 Ela inclina a cabeça para trás ao soltar uma gargalhada e diz.
 - E eu fiquei a pensar o mesmo!

 (07/03/2013)
Joaquim Rodrigues

"HISTÓRIA DA VIDA" (HD) Joaquim Rodrigues


"DEZ DIAS DE AMOR"

                                  

 Ela vem a Portugal pela primeira vez em muitos anos de sua vida. Chega de avião o transporte possível de cá chegar, trazendo a reboque uma mala de rodinhas. Está de férias e decidiu tirar uns dias sozinha na cidade do Porto, onde não conhece ninguém. Vai ficar uma semana num pequeno e agradável hotel para os lados de Matosinhos uma pequena cidade um pouco mais a norte da cidade do Porto a cidade que ela vem visitar. Entra no hotel, vai ver o quarto, deixa a mala e volta a sair sem demora, excitada com a perspetiva de aproveitar o resto da tarde. Vai vagueando por Matosinhos, a reparar nos turistas que andam por ali com a maravilhosa sensação de ser também como uma estrangeira numa terra estranha. Mete por uma ruazinha estreita e, chegando ao fim, dá com um café de especto acolhedor. Como tem fome e quer refugiar-se do calor, entra e senta-se a uma mesa. O empregado que vem atendê-la fala-lhe em inglês. Ela solta uma risadinha e pergunta-lhe com o seu sotaque do Brasil.
 - O que o levou a pensar que fosse estrangeira?
 Ele coça a sua cabeleira já rara, desgrenhada, ligeiramente embaraçado. Ela com cabelo bem tratado ligeiramente castanho claro, olhos castanhos, ar um pouco perdido e sem pressa.
- Achei que era, explica-se, peço desculpa.
Ela ri-se, divertida com a situação.
 - Não faz mal, diz ela.
 - Não é estrangeira mas é de fora, nota ele.
 - Sim, é verdade, sou Brasileira, vivo no estado Rio Grande do Sul.
 - Pois, já tinha reparado no sotaque.
 Ele vai voltando à mesa dela, para saber se precisa de alguma coisa, para fazer conversa. Ela acha-lhe graça e responde-lhe com gosto. É um homem entroncado, descontraído, veste jeans e t-shirt, tem uma alegria natural que a entusiasma. À saída, vai abrir-lhe a porta e pergunta-lhe se tenciona voltar.
 - Talvez, responde ela, enigmática.
Despede-se, volta ao calor excessivo que ainda faz ao fim da tarde. Mas nos dias seguintes regressa sempre para tomar o pequeno-almoço e ele lá está para a servir, maravilhado por tornar a vê-la. Ela fica a saber que está ali a trabalhar porque tinha ficado desempregado, mas que contava ser por pouco tempo, já tinha em vista algo melhor, e como a vida continua tem que ser, e trabalha ali para pagar os custos de uma casa onde ele vive, fica a saber outras coisas dele. Passam juntos todas as noites, no quarto dela. Ao fim de o 10º dia, ele leva-a ao avião, e depois de a beijar com paixão ajuda-a a subir com a mala e só volta com a partida deste já em movimento. Regressa a casa com um sorriso triste, já com saudades. Três meses depois ainda sente a mesma azia no fundo do seu estômago, a mesma que sentiu ao ver aquela mulher que o amou com o máximo carinho partir, ele quando se lembra disto deixa sempre cair uma lágrima. Ela passada alguns meses talvez porque não aguentasse voltou! Entra no café mas não o vê, pergunta por ele a uma empregada. Fica a saber que se despediu e não deixou nenhum contacto. O número de telefone que ele lhe deu já não funciona, procurou-o no Facebook e não o encontrou. De modo que sai do café desconsolada e, após alguns dias a procurá-lo pelos lugares em que andaram, volta ao Brasil com uma desilusão. Nunca mais saberá nada dele, nunca mais voltará a vê-lo, mas ficará sempre com a melancólica recordação daquele amor de 10 dias.

(07/03/2013)
Joaquim Rodrigues