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domingo, 23 de junho de 2013

"Uma vida inteira"


Ela observa o marido com irritação, vendo-o apático, sentado na velha poltrona de pele gasta. Uma chávena de chá intacta fumega em cima da mesinha de apoio, a seu lado.
  - Bebe o chá, diz--lhe.
  - Hã? Resmunga, olhando-a como se acordasse de um sonho distante.
  - O chá, repete ela, está a ficar frio.
Ele volta-se para o lado e parece descobrir a chávena, não obstante ter sido o próprio a colocá-la ali há minutos, quando ela lha entregou. Sentada no sofá, ao lado da filha, abana a cabeça, descoroçoada, baixa os olhos, agarra as agulhas que tem no colo e recomeça a tricotar.
  - Esquece-se de tudo, comenta, está a tomar umas cápsulas para a memória, mas esquece-se de as tomar. Se não for eu a lembrá-lo.
A filha solta uma gargalhada curta.
  - Pois, é normal que se esqueça, diz.
Tem a impressão de que já o vê ali sentado naquela poltrona de orelhas há um século, e, enfim, não será tanto, mas não anda lá muito longe. O seu exaspero é mais inquietação do que irritação, porque o sente a definhar de dia para dia, e sabe que é um processo irremediável. Mas estão juntos há tanto tempo que não sabe como viveria sem ele.
   - O pai está bem, diz a filha, para a sossegar.
   - Sim, responde, pouco convencida, ciente de que podem falar dele à sua frente que nem se apercebe.
O marido dá um gole no chá e volta a pousar a chávena ao lado, cuidadosamente.
   - É uma vida inteira, afirma ela, observando-o com afeição.


(Joaquim Rodrigues)
A filha assente com a cabeça, depois começa a tagarelar sobre os preparativos lá em casa, só para a distrair, mas ela parou outra vez de tricotar e pensa que deve a felicidade àquele homem. Há muitos anos.
  - Antes de tu nasceres, interrompe-a, o teu pai atravessou meio mundo para casar comigo.
  - Eu sei, diz a filha, foi atrás de ti quando a tua família emigrou para os Estados Unidos.
  - Sim, mas o que tu não sabes é que o teu pai, praticamente, acampou à minha porta durante um mês para me convencer a casar com ele. Isto apesar de eu lhe ter dito que não o queria, antes de partir de Lisboa. Venceu-me pelo cansaço, afirma, e convenceu-me pela coragem. Não tinha dinheiro nem para uma semana e aguentou-se quatro, por mim. Ainda bem, nunca me arrependi.
  - Um mês?! A filha arregala os olhos, espantada.
  - Um mês, confirma a mãe. Tive de casar com ele, porque não me largaria a porta, diz, sorrindo, saudosa.
A filha abana a cabeça,
  - Foi uma grande prova de amor, comenta.
  - Foi, concorda, erguendo à sua frente o casaquinho quase pronto, que está a tricotar. Foi há muito tempo, diz, noutra vida. E agora vem aí uma nova geração. Está bonito?
  - Muito, diz a filha, passando instintivamente a palma da mão pela barriga, com os olhos marejados de emoção.

(23/06/2013)
Joaquim Rodrigues

"Acalma-me" (HD) Joaquim Rodrigues


"Amor"

(Joaquim Rodrigues)

AMOR
Sempre te vou amar nas sombras da minha dor.
Sempre te chamarei do fundo do meu poço.
Eu me sinto sufocado de memórias.
E não vou servir para nada, se tu esperares.
Amor
Eu te estou chamando como o destino.
Como o sonho chama a paz.
Chamando com minha voz com o meu corpo.
Com a minha vida, com tudo o que tenho.
Amor
Com desespero sedento, com lágrimas.
Só contigo tenho oxigénio, tenho ar puro.
Na tua luz eu morrerei feliz.
De dia ou de noite e nas horas de esquecimento.
Horas fechadas apenas em lágrimas, com dor.
Estarei sempre chamando por ti meu amor.
 
(23/06/2013)
Joaquim Rodrigues

"Sêde de Prazer" (HD) Joaquim Rodrigues


"Um Poema de Amor"

(Joaquim Rodrigues)
O poema nasceu antes do poeta.
Mas não havia amor, antes do primeiro verso.
O amor nasceu antes de tudo.
Antes de tudo ninguém amava.
Antes de tudo, antes do poeta.
Existem duas formas de vida.
Duas formas, que são, amor, e o poema.
Não se pode falar sobre o beijo.
Sem amor, sem poema.
Não se pode falar sobre abraços.
Sem amor, sem poema.
Não se pode falar de amor.
Sem o poeta.
Como vamos omitir, cores e luzes.
Ter olhares silenciosos, triste refletidos.
Sem um poema de amor!?
Com o poema de amor.
Não há necessidade.
De chamar as estrelas.
Nem precisamos de usar.
O arco-íris.
Nem requer corações pintados.
O poema é vida.
Nunca morre sem sol, sem lua.
O poeta quando escreve.
Um poema de amor.
É como vivesse na lua.
Sentado na lua.
Um poema de amor nasce.
Porque ele ama.
Porque ele fala, ele sente.
E a lua é o melhor lugar.
Para escrever.
Escrever, um poema de amor.
 
(21/06/2013)
Joaquim Rodrigues