Ela observa o marido com irritação, vendo-o apático, sentado na velha poltrona de pele gasta. Uma chávena de chá intacta fumega em cima da mesinha de apoio, a seu lado.
- Bebe o chá, diz--lhe.
- Hã? Resmunga, olhando-a como se acordasse de um sonho distante.
- O chá, repete ela, está a ficar frio.
Ele volta-se para o lado e parece descobrir a chávena, não obstante ter sido o próprio a colocá-la ali há minutos, quando ela lha entregou. Sentada no sofá, ao lado da filha, abana a cabeça, descoroçoada, baixa os olhos, agarra as agulhas que tem no colo e recomeça a tricotar.
- Esquece-se de tudo, comenta, está a tomar umas cápsulas para a memória, mas esquece-se de as tomar. Se não for eu a lembrá-lo.
A filha solta uma gargalhada curta.
- Pois, é normal que se esqueça, diz.
Tem a impressão de que já o vê ali sentado naquela poltrona de orelhas há um século, e, enfim, não será tanto, mas não anda lá muito longe. O seu exaspero é mais inquietação do que irritação, porque o sente a definhar de dia para dia, e sabe que é um processo irremediável. Mas estão juntos há tanto tempo que não sabe como viveria sem ele.
- O pai está bem, diz a filha, para a sossegar.
- Sim, responde, pouco convencida, ciente de que podem falar dele à sua frente que nem se apercebe.
O marido dá um gole no chá e volta a pousar a chávena ao lado, cuidadosamente.
- É uma vida inteira, afirma ela, observando-o com afeição.
(Joaquim Rodrigues) |
- Antes de tu nasceres, interrompe-a, o teu pai atravessou meio mundo para casar comigo.
- Eu sei, diz a filha, foi atrás de ti quando a tua família emigrou para os Estados Unidos.
- Sim, mas o que tu não sabes é que o teu pai, praticamente, acampou à minha porta durante um mês para me convencer a casar com ele. Isto apesar de eu lhe ter dito que não o queria, antes de partir de Lisboa. Venceu-me pelo cansaço, afirma, e convenceu-me pela coragem. Não tinha dinheiro nem para uma semana e aguentou-se quatro, por mim. Ainda bem, nunca me arrependi.
- Um mês?! A filha arregala os olhos, espantada.
- Um mês, confirma a mãe. Tive de casar com ele, porque não me largaria a porta, diz, sorrindo, saudosa.
A filha abana a cabeça,
- Foi uma grande prova de amor, comenta.
- Foi, concorda, erguendo à sua frente o casaquinho quase pronto, que está a tricotar. Foi há muito tempo, diz, noutra vida. E agora vem aí uma nova geração. Está bonito?
- Muito, diz a filha, passando instintivamente a palma da mão pela barriga, com os olhos marejados de emoção.
(23/06/2013)
Joaquim Rodrigues