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quinta-feira, 7 de março de 2013

"COISA DE FILME"

                                     


A reunião de trabalho prossegue sem ele. Ele está algures a pensar no livro ignorado em cima da mesa da cozinha, ao lado do prato. A comida está fria porque ele está a pensar no cinema, de onde saiu a pensar na esplanada do centro da cidade, onde se foi sentar, ansiando então por regressar a casa, contrariado por se ter esquecido do livro. Na mesa ao lado ela está com um livro nas mãos, mas os olhos teimam em navegar distraidamente pela página sem que retenha uma frase, uma ideia. Um miúdo com uma camisola às riscas dá um grito, ela espreita por cima do livro e ainda vê o balão que lhe escapou das mãos a ascender lentamente. O pai do miúdo levanta-se e atira a mão ágil ao fio do balão, falhando-o por centímetros. Ele vê a mesma cena. A criança começa a chorar, os pais prometem que lhe compram outro balão, mas o miúdo, inconsolável, não se cala. Ele cruza os olhos com os dela, estão os dois a testemunhar o pequeno drama. Ele sorri-lhe e encolhe os ombros. Ela tem uma reação idêntica, encolhe os ombros e faz uma careta divertida, fingindo-se aflita com a birra da criança. Ele repara no livro que ela tem no colo. Vai fazer um comentário mas hesita, não diz, diz, não diz... Fica uns segundos naquele impasse. Ela acaba por desviar os olhos. Ele não resiste e diz.    
 - Esse livro é muito bom, não é?
 Ela vira a capa para si mesma, como se precisasse de a ver para saber que livro está a ler.
 - É, concorda, mas é difícil ler com esta animação toda.
 - Também o estou a ler, diz.
 - A sério? Eu comecei-o hoje, ainda vou no princípio.
 - E eu estava aqui a pensar que me esqueci do meu.
À noite, na cozinha, ele tem o livro ao lado do prato esquecido, com a mente a vaguear, a lembrar-se da mulher que conheceu depois do cinema, da coincidência do livro e da conversa que teve com ela. Ele escuta vagamente o seu nome na reunião. Percebe que estão todos à espera que diga alguma coisa, mas estava outra vez a pensar nela e não faz ideia do que falavam. O chefe pergunta-lhe se está cá, o colega do lado segreda-lhe a pergunta. Ele pede desculpa, recupera a compostura, responde. Ao fim da tarde volta à esplanada. Leva o livro na mão e uma ansiedade latente. Quando a vê sentada na mesma mesa a ler o livro sente um agradável alívio. Aproxima-se sem saber que ela está só a fingir que lê, à espera que ele diga qualquer coisa, e diz.
 - Hoje também trouxe o meu!
 Ela, simulando uma surpresa, diz.
 - Olá, está bom? Então, hoje veio prevenido.
 - Hoje vim, diz ele.
 Depois senta-se à mesma mesa de ontem, ao lado dela e diz.
 - Estava a pensar que esta coincidência parece coisa de filme.
 Ela inclina a cabeça para trás ao soltar uma gargalhada e diz.
 - E eu fiquei a pensar o mesmo!

 (07/03/2013)
Joaquim Rodrigues

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