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sexta-feira, 23 de agosto de 2013

"É Irónico o Destino"


Todas as manhãs ele sai de casa bem cedo. Levanta-se muito cedo porque não consegue dormir vai há onze anos, um mês e cinco dias. Sabe exatamente quanto tempo já passou porque o conta como um encarcerado conta os dias de sua pena.
Sai para a rua e como sempre, passa na loja de fruta a comprar cerejas, se for época delas, ou laranjas, que há durante o ano inteiro. Em seguida passa pela tabacaria, cumprimenta o ancião que está atrás do balcão que lhe entrega um maço de tabaco da marca que ele fuma sem necessidade de o solicitar. Como se encontra na rua, talvez compre pão e mais alguma coisa em falta, senão regressa logo a casa.
Já em casa vai sentar-se à secretária no pequeno escritório que mantém inalterado desde que compraram o apartamento, há vinte e dois anos, sim! Já lá vai vinte e dois anos! Tal como todas as outras divisões. Recusa-se a mudar seja o que for, apesar de, a certa altura, a filha ter insistido para que o fizesse. De qualquer modo, desistiu de o convencer quando percebeu que era inútil continuar a insistir com ele. Quando está no escritório sozinho liga sempre o computador, mas nunca chega a escrever uma única linha.
O seu editor telefona-lhe às dez a perguntar como vai o novo livro. Responde-lhe sempre o mesmo que lhe diz todos os dias desde há onze anos.
 - Está a andar bem.
O último livro que ele escreveu, nessa época, foi um sucesso tal que, se editasse realmente um livro novo, seria o acontecimento literário da década. O editor sabia disso, ele tinha a certeza disso.
 
(Joaquim Rodrigues)
Faz o seu almoço, como todos os dias, qualquer coisa lhe serve, come na cozinha, e volta para o computador, e, todos os dias, invariavelmente, acaba por lhe escrever uma carta que começa assim.
- Se tu soubesses minha querida! As saudades que eu tenho de ti.
Não se conforma por lhe ter sobrevivido e, de certa forma, isso não foi o que aconteceu, pois limita-se a existir desde então.
Foi uma coisa estúpida, ela tropeçou no passeio, caiu na estrada, foi atropelada. Ele tinha-se oferecido para a levar de carro, mas ela disse que não valia a pena e ele não insistiu, pois estava lançado a escrever e não quis cortar o raciocínio. Não há dia que não pense nisso, que deveria se ter levantado logo. Se a tivesse levado de carro, ela ainda estaria a seu lado, como deveria estar. Não se perdoa por isso.
É irónico o destino, sim, mas como é! Numa destas manhãs, ele vem a descer a rua e a pequenita que vai à sua frente pela mão da mãe, larga-a inesperadamente e foge-lhe. É um segundo decisivo. Ele salta sem pensar, empurra a criança para a mãe, e é apanhado em cheio pelo carro que não consegue travar a tempo. Está deitado de costas no asfalto a ver o céu muito azul, a pensar que o destino é irónico, e o destino de todos nós é sim irónico! E esse é o seu último pensamento.
Passados três meses depois, a sua filha vai ter com o editor dele e entrega-lhe todas as cartas que o pai escreveu para a mãe. Descobriu-as no computador quando desmanchava a casa. São centenas e, quando forem editadas em livro, serão o acontecimento literário da década.
 
18/08/2013
Joaquim Rodrigues

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