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sexta-feira, 5 de abril de 2013

"Notalgias II"


- Onde moras? Perguntou-lhe uma vez.
Ele, sentado frente ao teclado, no palco ao fundo do bar, com um cigarro no canto da boca, os olhos semicerrados, respondeu-lhe que a música era a sua casa. Ela adorava aquele seu ar diletante, aquela atitude despreocupada com que pairava pela vida. Estão ligados pela música, juntou-os o dono do bar. Ela vivia com o dono do bar, que a ajudou, a apoiou, a amou. Mas partiu em digressão, deu a volta ao país, viveu num mundo encantado, desinteressou-se dele. Apaixonou-se pelo companheiro de viagem, pelos seus olhos cinzentos perdidos na música quando os seus dedos deslizam pelas teclas, com uma expressão etérea envolvida pelo fumo do cigarro no canto da boca. No entanto, ele não quer realmente saber dela. É encantador e as mulheres vêm e vão, passam por si como tudo o resto, sem um compromisso perene que o prenda para a vida. Tem um pequeno apartamento caótico onde só vai dormir, enfim, um buraco sujo, como ela diz. Ele encolhe os ombros, despreocupado, mas ela seria incapaz de viver ali, de modo que, normalmente fica ele em sua casa.


(Joaquim Rodrigues)
Porém, ao fim de algum tempo o apartamento começa a parecer-se com o dele e ela desespera, vendo que não consegue mantê-lo arrumado ao ritmo que ele desarruma. Ela sai e ele fica por ali, acampado no sofá com uma guitarra nas mãos, espalhando garrafas de cerveja, pratos sujos, manchas de cinza de cigarro, roupa pelo chão. Já foi casado, por um breve período. Afirma, como quem conta uma piada, que desertou do casamento quando a mulher o avisou que teriam um filho quer ele quisesse, quer não. Ri-se da vida, aprecia o caos e é na música que se encontra consigo mesmo porque, através dela, pode viajar para um mundo indolor e aterrar na fantasia, e porque não lhe exigem muitas responsabilidades e perdoam-lhe as falhas e favorecem o seu virtuosismo com as teclas e a guitarra. Ao chegar a casa ela começa a limpar o impressionante rasto de porcaria que ele deixou desde a entrada até à casa de banho, antes mesmo de tirar o casaco, exasperada. Grita com ele, furiosa. Ele levanta-se do sofá, enfastiado, pega na guitarra e vai-se embora. Ela desiste dele, como todas as outras, e ele desculpa-se a si próprio com a falta de empenhamento, não reconhecendo a falta de carácter que salta à vista como um alarme gritante de que deve mudar algo urgentemente. De modo que regressou ao apartamento dele, ao buraco sujo, e está outra vez à deriva dos acontecimentos fortuitos que vão marcando a sua existência. Sente-se triste e com saudades, mas também aliviado porque se livrou do compromisso e evita pensar muito nela para não se martiriza.

(22/06/2012)
Rodrigues Joaquim:

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