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quarta-feira, 20 de março de 2013

"Anjo da Guarda"



Às três e meia da manhã, concentrado no computador, agarra sem olhar no maço de tabaco mas percebe que os seus dedos não encontram nenhum cigarro. Tenciona prolongar o serão para acabar de vez o processo. Mas sem cigarros não consegue pensar, sente-se irracional, como se o fumo tivesse realmente a ver com isso, mas a verdade é que o ajuda. Desde o acidente, tem mais dificuldade em concentrar-se. Suspira, contrariado, decide ir à bomba de gasolina comprar tabaco.
Entretanto! Às três e meia da manhã, quando dobra a bata com gestos cansados, o seu turno no hospital já terminou há muito, mas um casamento que começou mal entrou de urgência e foi uma confusão com cento e cinquenta convidados intoxicados a expelir de jorro um mar de camarões venenosos para os baldes arranjados à pressa.
Chega à rua e inspira o ar fresco da noite, apercebendo-se como se acaba insensível ao ambiente saturado lá de dentro. Pensa na mãe a dizer-lhe que passa demasiado tempo no hospital e que vai casar com um médico ou ficar solteira. Encolhe os ombros ao pensamento, só quer ir para casa. Mas lembra-se que não tem cigarros e que terá de passar pela bomba de gasolina. Compra um maço de tabaco que lhe chega através da caixa de segurança empurrada pelo homem no outro lado do vidro, abre-o, retira um cigarro, procura o isqueiro nos bolsos mas uma chama acende-se à frente dela. Leva o cigarro à boca, acende-o. Levanta os olhos e sente um impacto de reconhecimento ao ver aquele rosto sorridente. Diz um obrigado mudo de espanto.
- De nada, responde ele, e afasta-se, ficando por ali encostado a uma moto. Ela hesita em falar com ele, mas é irresistível. Aproxima-se.
- Não se lembra de mim, pois não?
- Não, responde-lhe, surpreendido.
- O acidente há uns anos, diz ela. Quantos foram? Pensa, quase quatro.
Parece que o está a ver, inanimado no asfalto como morto, a moto desfeita, a ressuscitá-lo com manobras respiratórias, os seus olhos confusos, assustados, presos aos dela, a segurar-lhe a mão enquanto não chega a ambulância. Foi o seu primeiro salvamento, nunca mais o viu. Conta-lhe tudo.
- Foi você! Exclama ele com os olhos turvos de emoção, e abraça-a num impulso, o meu anjo da guarda.
E ela sem saber o que fazer às mãos, embaraçada.
- Não imagina o que eu a procurei, queria tanto agradecer-lhe, percorri os hospitais todos!
Seis meses passaram. Ela acaba o turno e vai para casa. Ele está à sua espera a trabalhar no computador e levanta-se logo para a abraçar. Nunca se cansa de a abraçar. E para ela é a melhor hora do dia, quando volta para ele.
A mãe agora abana a cabeça e diz-lhe com uma fatalidade que não casou com o médico, casou com o paciente!

(04/11/2012)
Rodrigues Joaquim:

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